Friday 25 September 2020

VIAGEM NA CALEDÓNIA - SEGUNDO E TERCEIRO DIA EM DUNEDIM - (Audiolivro em galego-português)

 


Nom me lembro mui bem do que figem no segundo dia em Dunedim, Dunedin sendo o mesmo que Edinburgo, Auld Reekie, ou Velha Fedegosa (e eterna, pra mim). Talvez ficara na estalagem, a ler livros de aprendizagem de língua gaélica ou de baralhete dunedino. Talvez me ensimesmara em diante do meu computador, a pescudar certos fenómenos perniciosos, malévolos a escala global. Talvez tentara, simplesmente, fazer daquele singelo, embora funcional, quarto de estalagem a minha nova moradia. Nom sei. Acho porém que devim sair dar ũa volta a pé pola cidade, e que a choiva contínua enchoupava tudo. Decerto que devim pôr a minha velha pucha, a mesma que punha quando ia trabalhar naquela fábrica de engarrafamento de uísque no porto de Liz, e que guardei comigo desde entom, através dos tempos e lugares que se seguírom, como que fosse relíquia dum passado que eu decidim modelar ao jeito dum mito. Que seria daqueles homes e mulheres que aló trabalhavam, empurrando garrafas naquelas correntes contínuas e fuchicando nos inúmeros botões e alavancas que as governavam, sempre fazendo os mesmos gestos, dia após dia. Eu próprio imitei por um corto período de tempo esses gestos, os mais singelos deles, até que cansei daquelas repetições de escravo, até que cansei de dormir a sesta estombalhado nos prados dos vencelhos, ou Links, após a jornada do trabalho. Xordos, ou quase, devem estar agora muitos daqueles homes e mulheres, ca nom punham, nom queriam pôr, os protetores auditivos. Mas hoje sim lhes devem obrigar a pôr outros protetores, que porém nom precisam. Cousas da vida.

Aquilo era Liz, sunny Leith, isto é já Edinburgo, Auld Reekie. Prince street, Toll Cross. Auga do céu a Deus dar. As minhas lembranças, deslavadas. Por aqui passei, sim, alá já estivem eu, acolá nom, acho que é agora a vez primeira, é esta ũa cidade grande. O velho dilema, visitar os mesmos espaços, lembrar, ou antes explorar outros novos. Outra cidade, fim do passado, é isso que quero? Seica ũa combinaçom de âmbalas duas hipóteses, ou seja, nengũa. Entro nũa loja comprar um abre-garrafas. Ponho a focinheira, claro. O meu impermeável total, as minhas augas e os meus vírus, entramos na loja. Todos coa carauta, ou focinheira. A humidade da cidade, desta cidade. A choiva. Volto prò meu tobo, cangado de certas cousas, descangado doutras. Da fiestra vejo a auga a cair sobre o telhado dalgum estabelecimento, nom sei qual é, acho que já o dixem. O céu grisalho, agora lembro como era cinzento, aquele céu impassível. Nom me dera outra escolha. Tinha de agir, entrar no jogo. E vinte anos mais tarde, voltei pra lembrar.

Dunedin, Edinburgo, no terceiro dia. Saim às ruas, visitar a cidade. Endireitei pola rua MacDonald, dando em breve a um carreiro ou congostra dessas que furam esta cidade, sorrateiros. Direçom jardim botânico. Estava pechado, tanto me tinha, eu seguim polo carreiro, direçom agora da cidade geométrica, ou georgiana. A choiva desaparecera, ficara só o céu de chumbo, impenetrável da raiola. Alguém me pergunta por algum lugar, acho que fora precisamente o Jardim Botânico. É por ali abaixo. Tam longe. Entro, desta vez bem desperto, no bairro do castelo, atravessando pola ponte norte. A Milha d’ouro, porque se chamará  assi? Meto-me, de novo, polas laterais canelhas velhas. Um contentor de lixo bloquea-me parcialmente o passo, ũa goteira além tenta entravar-me. Gente mora ali, no cor da cidade velha. Sacos de lixo esparexidos. Paxaros pretos, gaivotas sem sono. Tudo isto eu já o vira, pra que estou aqui? Mais pra baixo entro na aira do palramento caledónio, com muito aparato de pedra moderna e escritos poéticos nela lavrados pra edificaçom dos passantes. O Holyrood, onde um anaco da cruz do Cristo se assinalara. Sofrimento dum pra salvaçom de todos, com relíquias pra contemplaçom no intervalo. A rainha, a da Inglaterra. E um bocadinho atrás, aquela biblioteca tam original, agora pecha por mor do conavírus, aquela biblioteca «de poesia», que apareceu na fachada coa escrita que eu próprio imaginara antes de ela ser construída, there’s no wealth, but life. Naquela biblioteca eu concebera um livro inteiro, intitulado A Gaeldónia, e mais lim os versos dos trobadores galego-portugueses, noutro livro. Só um home ali podia ler naquele livro, sabia aquela língua milenar, aquela lingua sem igual. E após ler aqueles versos da sua própria língua, que outros homes da mesma fala escreveram mil anos antes, as folerpas de neve batiam na sua cara, acho que escrevera, e assi se formara o mito, o mito de si próprio, esse mesmo que agora está a se reviver. Um escolheito, um home diferente, ali naquela cidade longínqua do norte. A falar aquela língua, a lê-la nas palavras de mais de mil anos, escritas num livro agochado no fundo dũa estante, nũa biblioteca dũa cidade distante, do norte. O galego. 

Mais tarde, atingim de novo o cúmio da Carlton Hill. Ao fundo, no Firz do Forz, a frota de Darien entrava no porto, tal como muitos a sonharam. Nas altas ervas, embora havia quem praticava atividades perversas e proibidas, eu simplesmente me deitava no começo da tarde, amagastrando as mentadas altas e verdes ervas, deixando que o sol iluminasse a minha face, o meu escuro espírito. Tudo estava ali, tudo. Nom havia mester de mais nada. E num meu livro era o tempo dum caledónio, exilado em Darien, abafado do calor das florestas tropicais, comesto dos mosquitos. E eu a sonhá-lo, eu home do sul envolveito nas brêtemas do Forz, aquelas que entravam tam ligeiras que nem dava tempo a tirar as roupas penduradas dos eidos e cortinhas das casas, antes de ficarem já todas enchoupadas. Descim cara a banda da rua de Londres. Voltei prò meu novo e velho tobo, o quarto alugado da minha estalagem, por só mais ũa noite. Decerto que bebim ũa cerveja, e que antes de me deitar a dormir esperei, coa mesma determinaçom de sempre, vir a resuscitar dos meus sonhos, acô na Velha Fedegosa e eterna.


VIAGEM NA CALEDÓNIA - PERSEVERE - (Audiolivro em galego-português)

 


Pilrig road. Um home ainda jovem caminha pola noite sem lua da velha fedegosa. O tempo parece sustar-se, as nuvens que se adivinham no céu param e ficam imóveis. Nom hai mais ninguém na rua, mesmo em qualquer outra rua da velha cidade. O home senta na cea dũa banda do passeio, a que dá pra um parque público. Arregaça as mangas, fica-se ali sentado, a respirar o ar húmido da madrugada ainda noite pecha. Cuida em esperas, em tempos suspensos, em paciência. Uns metros rua abaixo, na direçom do porto de Leith, fica ũa ponte, encol precisamente da Auga de Leith. O lema da cidade, escrito sobre o seu escudo de armas: persevere. Vinte anos hipnotizado por essa visom, vinte anos de aguarda, de perseverança. O retorno, a compreensom do todo.

Do outro lado da rua hai um cemitério, ouvem-se conversas, em tons acougados, entre os seus inquilinos. A lua parece agora furar a camada eterna de nuvens da Velha Fedegosa. O home olha pràs próprias mãos, vê ossos e falanges, intui-se cadáver. Era isto que querias? diz-se a si próprio. Ainda nom estás a falar cos mortos, nem entendes a sua fala caledónia. Em pé, continua a caminhar. Chegado à altura da ponte, ajoelha-se, beijou o escudo do porto, de Leith, aí onde diz persevere. Vê-se a caminhar pola rua adiante, virar à direita, atravessar a rua do Ferry, enfiar por outra rua. Entrar num prédio, desaparecer. Vinte anos se passam entre essa visom e estoutra. Tudo mudou e nada semelha diferente. É hora de voltar prà cidade, antes, de entrar nela, na Velha Fedegosa. Nunca é tarde, diz-se a si próprio segundo bate na porta dum velho andar alto, agora no cor do bairro do castelo, já em Dunedim. Ah, já chegache, era hora, diz-se a si próprio, do lado de dentro do andar. 

Sentado num cadeirom, na sala do andar, aguardo a ser servido um chá. Aguardo. Passam-se alguns minutos, talvez horas, dias, meses e anos. Eras geológicas. Quando o chá chega, já está frio. Quem mo serve tem na face e no corpo tódolos sinais do tempo, rugas e marcas de desapontamentos, ũa tristura como que eterna. Olho em torno de mim, naquela sala. A mobília tamém velha, anterga, de madeira. Rústica, imperfeita. Nos recunchos do tecto, a escuridade agocha cousas insuspeitas, velhas tamém elas. Respiro fundamente. Dou um sorvo, um grolo, ao chá. Vozes da longínqua Índia ecoam dentro de mim, segundo bevo a minha beberagem, que me fora servida. Um recendo a umidade, ũa bolorência que invade a atmosfera da sala, a do meu interior tamém. Hai por dentro de mim os mesmos canelhões do bairro do castelo da rocha, de escadas íngremes, escurecidas, a empatar andares diferentes da mesma cidade, do mesmo corpo. O meu corpo. A velhice espera, persevera, por mim. Os sinos de Sam Giles tocam a morto, ou a prédica, nom entendo de sinos. Um home rua abaixo, já na Canongate, aguilhoa ũa pequena multidom, falando de livros, de palavras que um Deus, ao que parece, dixo. De volta em Sam Giles, a mesma multidom, agora ali, alporiça-se, rejeita a ordem que lhe imponhem. Paus e bolos, pedras, mesmo cadeirinhas voam dentro da devandita igreja, ou catedral dunedina. E eu bebo um outro grolo de chá, indiferente ou divertido ao sino que marcam os sinos dessa igreja. Desço por outras canelhas, sempre ladeirentas, com inumeráveis degraus, mesmo subo por elas, tento pescudar a essência dessa cidade, dessa persoa. De mim mesmo. Quem som eu. Quem é a Velha Fedegosa, Dunedin dos Votadini. Quem som essas gentes, essa mulher que berra, dũa fiestra aberta, gardalú, antes de emborcar ũa vacia de obscenidades, e que houvo enchoupar-me, a mim, home já enchoupado de imundices. Persevere, empate o sol e a iauga de Liz coa pedra do vulcám morto. Alague-se cara o Forz, construa além ũa nova cidade, matematicamente, com geometria exemplar, a ser repetida em inúmeras outras cidades, noutros continentes. 

O som das gaitas enche-me os ouvidos, é sempre a mesma melodia, Caledónia a Maior. Era esta a minha cidade, aquela que um dia desejei estar deserta de todo home? Sentado sempre na minha cadeira percorro os diques de intrusom volcánica, agarimo a sua distinta consistência, leio neles as velhas palavras de poesia galega, que falam de soedade e rexurdimento. Do alto da cadeira de Artur contemplo o Firz do Forze ao longe, a cidade velha, fedegosa, aos meus pés. Nom me cansa rubir estas rochas de lava gélida, as terraças de pedra preta florescida de giestas e fróis amarelas. A cidade aos meus pés. A sala do andar, na espera eterna da eternidade. Agardo por mim mesmo, findando o meu chá. A cunca baleira, nom fica mais chá nela. Alguém vem arrecadá-la, levá-la pra cocinha, som eu mesmo, som eu o meu hóspede, som eu a cidade, as pedras e as fróis, o vulcám petrificado. Tornei-me, porfim, mim próprio.


VIAGEM NA CALEDÓNIA - THERE’S NO WEALTH BUT LIFE - (Audiolivro em galego-português)


Adormeço. Mas em breve acordo, alguém está a petar na porta. Ergo-me e abro, sem me incomodar em olhar pola mira. Nom hai ninguém lá fora, o corridor está na escuridade, deserto e silencioso. Talvez só sonhara. Volto ao leito, enfio-me baixo do edredom, e volvo adormecer. Desta vez o sonho é real. Auld Reekie, a Velha Fedegosa, lá fora, ri, às gargalhadas. «Voltache, eh? Queres que che amosse os meus segredos? Sai pra fora e haverás ver o que eu era, coma ti, num tempo. Lembras-te do nosso dito, n’é?: there’s no wealth but life». «Sim, lembro-me, there’s no weatlh but life», respondo-lhe. E é agora, só agora, que compreendo o seu significado.



 

VIAGEM NA CALEDÓNIA - VELHA FEDEGOSA - (Audiolivro em galego-português)

 


O trem chegou à estaçom central da velha cidade de Dunedin, ou Edinburgo, capital do país. Édina, pròs compadres. Todo cristo c’a focinheira posta, mesmo hai quem leva a carauta essa de plástico dos tolos que andam a explorar as crateras dos vulcões. Carregado coas minhas duas sacas, ũa nas costas e outra pendurada do peito, rubo as escadas de saída prà rua, a Rua do Príncipe. Está muito mais acougada do normal, sobretudo em trânsito motorizado, embora haja bastante gente a caminhar, mormente turistas coma mim. Do tempo nom me poido queixar, nom é que estea calor, mas polo menos nom chove. Mas o vento, nesta cidade, nom podia faltar, claro. Faço um pequeno desvio pra reviver os meus primeiros passos nesta cidade caledónia. Praza do Santo André, co alto obelisco de nom sei quem no meio. E volta a começar. Era ũa belida cidade, cum cheiro caraterístico a papas de pam molhado em leite e um pendor nos autocarros a quase se darem no cu uns aos outros, como que tendo o formigo no corpo de nom se sabe o quê. Chego aginha à minha estalagem, no Passeio de Liz, o meu velho e caro passeio que tantas vezes percorrim. Mágoa é que estea em obras, todo ao longo polo meio, com valados metálicos e máquinas ruidosas a trabalharem. Nom podia faltar: quantas vezes tenho chegado a ũa cidade pra ver que o mais monumental ou relevante que tem está em obras ... enfim. O meu quarto é tam bom como aparecia no website: moderno, linear, funcional, com muito espaço, cama larga, escritório e estantes, fiestra a dar pra ... os telhados de nom sei que fábrica, e mais a biblioteca do canto da rua Macdonald. Instalo-me, mas sem desfazer a grande saca das costas, ca vou ficar aqui só três dias. Saio fazer ũas compras, desço polo passeio de Liz, até chegar ao cabo dele, o chamado Pé do Passeio. Já está arrefecendo, devim ter posto a camisola. Hai muitos estrangeiros por este bairro, ou vila de Liz, gentes algũas de aspeto meridional, coma mim, e muitas outras parecem estudantes, e outros emigrantes. Tamém se adivinha a presença dos naturais do lugar, num ambiente como de depressom económica e social: muitas lojas estám pechadas, outras abertas com limitações próprias do conavírus. Começa a chover, entro no Aldi, fazer ũas compras. O caixa, coa focinheira posta, pergunta-me como é que vou indo. Eu digo-lhe, literalmente, it’s back to Auld Reekie again he he, que quer dizer que estou de volta na Velha Fedegosa. Ao sair do Aldi já a choiva parou quase de todo. Caminho de volta prò meu tobo, em direçom contrária àquela de hai vinte anos, ca eu morava perto do porto. No meu quarto, arrumo cousas, deito-me na cama. Fico a olhar pro céu de chumbo. It’s Auld Reekie again, fuck me. Houvo um tempo em que eu amei esta cidade, figem-na minha. Agora, eu sentia o que se sente ao ver aquela amada dos tempos dantes. Ũa familiaridade, mas ao mesmo tempo um vazio, como que um querer sentir e nom sentir nada. E o único que resta é a futilidade da nossa vida, o passo imparável do tempo. Aquilo que parecia como um sonho futuro é em realidade ũa realidade presente, enquanto aquele passado mítico perde a sua aura. Fica só a amargura da desfeita, do tempo perdido. E se puidesse dar a volta ao tempo, voltar vinte anos prà trás? Sinto que se tal fosse possível, voltaria a fazer o mesmo, a cometer os mesmos erros. Só que sabendo-o, sem enganar-me. E o que jaz atrás dessa saudade é em realidade muito mais mítico, mais sublime. Porque imaginar-me nesta cidade de novo, vinte anos atrás, recém-chegado com nada ou pouco, é imaginar recuperar aquele grande tesouro que é o único que temos: potencialidade.


VIAGEM NA CALEDÓNIA - LIMIAR - (Audiolivro em galego-português)





Eu havia já muito tempo que conhecia a Caledónia, seica demasiado. Mas a razom de decidir fazer ũa nova visita a essa terra de gaitas e uísque foi, compre-me reconhecê-lo, de jorne negativo: a improbabilidade este ano de eu sair desta Ilha de Alba, em que moro hai ja muito tempo, seica demasiado. A argalhada do conavírus, Covid-dazanove ou como caralho o quigerem chamar ― esse vírus imaginário argalhado hai algum tempo, seica nom demasiado, por gente de duvidosa moralidade ― fazia-me arriscada qualquer saída prò continente. Nom era questom de ficar detido ou arrestado num aeroporto e a passar o demo sabe quê mais apertarrabos. Era, já que logo, o tempo da tropical Escócia, ou Caledónia, coma eu e os romanos a chamamos. Botei ũa olhada ao meu mapa impermeável das Terroutas — Highlands, na língua daqui — que parecia que os anos nom passaram por ele, e aginha como que ũa morrinha e saudade de rexos e outos pinheiros caledónios, montes e breixos agalegados e mais picadas de mosquito e carrachas a sugarem-me o sangue, ũa morrinha de tudo isso, alagou o meu coraçom mancado. Era agora ou nunca. Eu passara as férias da última década toda em países de latitudes e climas quentes, de modo a recuperar a minha teixa alma das brêtemas e choivas da Ilha de Alba. Mas sempre cobiçara retornar à Caledónia, passar ali um bom anaco do vrão — se tal puider ser chamada ũa tempada de choivas e friagens — a desfrutar as longas serães, como quando eu era mais moço e recém-chegado doutra ilha. Dali da Caledónia, assi matinava eu já, haveria revisitar o passado, mesmo dar a volta ao tempo, e voltar a escrever, num andar ou quarto qualquer, sentado à fiestra com vistas ao imóvel céu de chumbo caledónio, à sua imobilidade e frieza. A insónia das gaivotas, eu já escrevera ũa vez, seica em língua saxã, cos seus guinchos e voos arredondados no ar da madrugada, voltaria a inspirar a mourém da minha alma, como em tempos mais recuados. 

Cidades celtigas de pedra grisalha e teitos da mesma deslavada cor escura, onde a choiva nunca está longe do agora, fragas de carvalhos e pinheiros e urzes e breixos, onde as cores dum raro céu azul e sol fulgente já testemunhárom dos meus passos. Ferzes ou rias caledónias, onde o mar do Norte abala e devala em mainas e rítmicas vagas da mesma cor do céu. Aprontai-vos prò meu retorno, ca já estou a caminho. Lembrades-vos da primeira vez, da nossa primeira vez? Eu sim. Já passou muito tempo daquela, e eu era, ou assi me via eu, apenas um rapaz. 

Hai daquilo vinte anos.


Tuesday 4 April 2017

O PRESIDENTE DO CONSELHO (I) - Relato galego de JL Valinha



O meu pai trabalhou muitos anos na Corunha. A família dele vinha sendo de uma aldeia ao lado de Sárria, uns quarenta quilómetros a Sul-Este de Lugo, mas ele foi logo, com sua mãe e irmãos, quanda o meu avô Ramiro, que exerceu vários anos em Sada, pois era médico de várias aldeias na redondeza das Marinhas da ria dessa povoaçom.

Do meu avô Ramiro lembram-me muitas cousas, pois eu adoitava ir quanda ele às aldeias, onde muitos dos seus doentes marinhãos já me conheciam,  e me chamavam “o doutor pequeno”, pois eu costumava ajudá-lo a carregar o material sanitário que levava na sua mala de médico. E eu gostava muito de falar com ele polo caminho, pois ainda que vivia connosco na Corunha, iamos no eléctrico até Sada, e depois iamos de automóvel polas aldeias à procura dos doentes…

Houvo um dia que lhe encontrei um velho jornal numa mala, onde na primeira página aparecia a fotografia dum tipo que já daquela me era familiar. E perguntei por ele ao meu avô:
- Quem é esse home do jornal, o da barba?
- Ai filho  –sempre me chamava assim, antes que polo nome - já me andache na mala! Bem che dixem que era para ma levares, nom para remexeres nela!
- Eu…
- Bem sei, home, bem sei, era-che por rir, cousas dum cativinho! Nom hai cuidado, só que me andes com jeitinho c’as ferramentas que aí vam….
- Mas, avô, quem era…?
- Ufff, esse tipo era, esse tipo é… hoje é… olha filho, deves-me guardar o segredo porque isto nom sei se o sabe muita gente, se quadra nom o sabe ninguém, nom sendo eu e… agora há-lo saber tu…

Chamava-me a atençom o meu avô sempre a usar o tu, o seu pronome tu, da sua fala natal, quando a falar com os doentes aos que por tal tratava, mormente meninhos ou rapazes, sempre empregava o ti, pronome habitual por aquelas bandas corunhesas… nom sendo os desconhecidos, que o meu avô era home bem educado e nom descuidava a cortesia do vostede, ou ainda, para os mais velhos ou anciãos, o tratamento por vós, que ainda era frequente nessas zonas da Galiza até hai bem pouco, e que, mesmo, lhe prodigavam a ele os mais velhos daquelas bisbarras, além do mais frequente de senhor doutor…

- Eu nom lho digo a ninguém, juro-cho, -dixem eu estendendo-lhe as mãos para nom ser apanhado em mentira ou falsificaçom do juramento-
- Quando eu morrer, e estiver já bem em baixo da terra, podes escrever um livro com este conto…
- E logo, isso que me has contar, é verdade ou nom?
- É, filho, é… - e ficou sério, a pensar, enquanto detinha o carro à beira da estrada, como se o esforço em lembrar aquela história o fosse distrair na sua conduçom.
E continuou:
- Espera, no eléctrico, à volta, hei-che contar polo miúdo. Agora é tarde e temos ainda que visitar uma mulher toda mirradinha, ela julga que de tristura porque lhe marchou o home, mas é pola deficiente alimentaçom… tem que termar de quatro filhos e tira-o da boca para lhe-lo dar, a eles…

Meu avô sabia uma cheia de cantigas que lhe ensinavam as gentes nas aldeias quando o convidavam a algum vinho, que ele já na casa apontava num caderninho que me nom deixava tocar nele… tinha bom ouvido para a música, e uma memória prodigiosa, mas nunca chegou a aprender nem solfejo, nem a tocar algum instrumento, nom tinha tempo, dizia ele, ainda que tinha era aptidom, disso nom tenho nenguma dúvida…

Minha mãe como era probe
Nom tinha pam pra me dar-e,
Encheu-me a cara de bicos
E arrebentou a chorar-e…
Ailalelo…

Cantava, e a seguir sempre me dizia a mesma parrafada…
- Ai, filho, que nunca me passes a fame, nem as tristuras que eu vim nos meninhos destas terras,… porque, se che conto as vidas deles, choras…
Anos despois, quando ainda havia eléctrico na Corunha e eu ia com meu pai, revivia aqueles dias de verão em que acompanhava o meu avô na sua vida de doutor…

Porque tirariam o eléctrico da Corunha?