Nom me lembro mui bem do que figem no segundo dia em Dunedim, Dunedin sendo o mesmo que Edinburgo, Auld Reekie, ou Velha Fedegosa (e eterna, pra mim). Talvez ficara na estalagem, a ler livros de aprendizagem de língua gaélica ou de baralhete dunedino. Talvez me ensimesmara em diante do meu computador, a pescudar certos fenómenos perniciosos, malévolos a escala global. Talvez tentara, simplesmente, fazer daquele singelo, embora funcional, quarto de estalagem a minha nova moradia. Nom sei. Acho porém que devim sair dar ũa volta a pé pola cidade, e que a choiva contínua enchoupava tudo. Decerto que devim pôr a minha velha pucha, a mesma que punha quando ia trabalhar naquela fábrica de engarrafamento de uísque no porto de Liz, e que guardei comigo desde entom, através dos tempos e lugares que se seguírom, como que fosse relíquia dum passado que eu decidim modelar ao jeito dum mito. Que seria daqueles homes e mulheres que aló trabalhavam, empurrando garrafas naquelas correntes contínuas e fuchicando nos inúmeros botões e alavancas que as governavam, sempre fazendo os mesmos gestos, dia após dia. Eu próprio imitei por um corto período de tempo esses gestos, os mais singelos deles, até que cansei daquelas repetições de escravo, até que cansei de dormir a sesta estombalhado nos prados dos vencelhos, ou Links, após a jornada do trabalho. Xordos, ou quase, devem estar agora muitos daqueles homes e mulheres, ca nom punham, nom queriam pôr, os protetores auditivos. Mas hoje sim lhes devem obrigar a pôr outros protetores, que porém nom precisam. Cousas da vida.
Aquilo era Liz, sunny Leith, isto é já Edinburgo, Auld Reekie. Prince street, Toll Cross. Auga do céu a Deus dar. As minhas lembranças, deslavadas. Por aqui passei, sim, alá já estivem eu, acolá nom, acho que é agora a vez primeira, é esta ũa cidade grande. O velho dilema, visitar os mesmos espaços, lembrar, ou antes explorar outros novos. Outra cidade, fim do passado, é isso que quero? Seica ũa combinaçom de âmbalas duas hipóteses, ou seja, nengũa. Entro nũa loja comprar um abre-garrafas. Ponho a focinheira, claro. O meu impermeável total, as minhas augas e os meus vírus, entramos na loja. Todos coa carauta, ou focinheira. A humidade da cidade, desta cidade. A choiva. Volto prò meu tobo, cangado de certas cousas, descangado doutras. Da fiestra vejo a auga a cair sobre o telhado dalgum estabelecimento, nom sei qual é, acho que já o dixem. O céu grisalho, agora lembro como era cinzento, aquele céu impassível. Nom me dera outra escolha. Tinha de agir, entrar no jogo. E vinte anos mais tarde, voltei pra lembrar.
Dunedin, Edinburgo, no terceiro dia. Saim às ruas, visitar a cidade. Endireitei pola rua MacDonald, dando em breve a um carreiro ou congostra dessas que furam esta cidade, sorrateiros. Direçom jardim botânico. Estava pechado, tanto me tinha, eu seguim polo carreiro, direçom agora da cidade geométrica, ou georgiana. A choiva desaparecera, ficara só o céu de chumbo, impenetrável da raiola. Alguém me pergunta por algum lugar, acho que fora precisamente o Jardim Botânico. É por ali abaixo. Tam longe. Entro, desta vez bem desperto, no bairro do castelo, atravessando pola ponte norte. A Milha d’ouro, porque se chamará assi? Meto-me, de novo, polas laterais canelhas velhas. Um contentor de lixo bloquea-me parcialmente o passo, ũa goteira além tenta entravar-me. Gente mora ali, no cor da cidade velha. Sacos de lixo esparexidos. Paxaros pretos, gaivotas sem sono. Tudo isto eu já o vira, pra que estou aqui? Mais pra baixo entro na aira do palramento caledónio, com muito aparato de pedra moderna e escritos poéticos nela lavrados pra edificaçom dos passantes. O Holyrood, onde um anaco da cruz do Cristo se assinalara. Sofrimento dum pra salvaçom de todos, com relíquias pra contemplaçom no intervalo. A rainha, a da Inglaterra. E um bocadinho atrás, aquela biblioteca tam original, agora pecha por mor do conavírus, aquela biblioteca «de poesia», que apareceu na fachada coa escrita que eu próprio imaginara antes de ela ser construída, there’s no wealth, but life. Naquela biblioteca eu concebera um livro inteiro, intitulado A Gaeldónia, e mais lim os versos dos trobadores galego-portugueses, noutro livro. Só um home ali podia ler naquele livro, sabia aquela língua milenar, aquela lingua sem igual. E após ler aqueles versos da sua própria língua, que outros homes da mesma fala escreveram mil anos antes, as folerpas de neve batiam na sua cara, acho que escrevera, e assi se formara o mito, o mito de si próprio, esse mesmo que agora está a se reviver. Um escolheito, um home diferente, ali naquela cidade longínqua do norte. A falar aquela língua, a lê-la nas palavras de mais de mil anos, escritas num livro agochado no fundo dũa estante, nũa biblioteca dũa cidade distante, do norte. O galego.
Mais tarde, atingim de novo o cúmio da Carlton Hill. Ao fundo, no Firz do Forz, a frota de Darien entrava no porto, tal como muitos a sonharam. Nas altas ervas, embora havia quem praticava atividades perversas e proibidas, eu simplesmente me deitava no começo da tarde, amagastrando as mentadas altas e verdes ervas, deixando que o sol iluminasse a minha face, o meu escuro espírito. Tudo estava ali, tudo. Nom havia mester de mais nada. E num meu livro era o tempo dum caledónio, exilado em Darien, abafado do calor das florestas tropicais, comesto dos mosquitos. E eu a sonhá-lo, eu home do sul envolveito nas brêtemas do Forz, aquelas que entravam tam ligeiras que nem dava tempo a tirar as roupas penduradas dos eidos e cortinhas das casas, antes de ficarem já todas enchoupadas. Descim cara a banda da rua de Londres. Voltei prò meu novo e velho tobo, o quarto alugado da minha estalagem, por só mais ũa noite. Decerto que bebim ũa cerveja, e que antes de me deitar a dormir esperei, coa mesma determinaçom de sempre, vir a resuscitar dos meus sonhos, acô na Velha Fedegosa e eterna.